Juros altos, inflação resistente em níveis elevados e renda estagnada derrubaram as vendas e fizeram as empresas brasileiras de varejo perder R$ 339,6 bilhões de valor de mercado nos últimos dois anos. A desvalorização das ações na Bolsa equivale ao PIB do Uruguai, informa Marcia de Chiara. O resultado foi influenciado pela crise da Americanas, mas vai muito além. Ações de 23 varejistas recuaram, em média, 59%. “A demanda está muito fraca, especialmente para produtos que necessitam de financiamento”, diz Viviane Seda, da FGV. O cenário não é favorável a mudanças significativas no curto prazo, especialmente para venda de itens de maior valor, dizem economistas.
Empresas de varejo perderam R$ 339,6 bilhões de valor de mercado nos últimos dois anos. O tombo, com a desvalorização de ações na Bolsa, equivale ao Produto Interno Bruto (PIB) do Uruguai. Juros altos, inflação resistente em níveis elevados e renda estagnada tiraram o poder de compra dos brasileiros, enfraqueceram as vendas e fizeram o varejo cair na real.
Nem mesmo o suspiro de vendas que houve na pandemia, por causa da explosão do e-commerce, foi capaz de atenuar o enfraquecimento do comércio nos últimos tempos. Isso tem reflexos na atividade como um todo. O consumo das famílias responde por 60% do PIB, e o varejo é uma fatia importante.
Os resultados do comércio impactam o desempenho da indústria e a taxa de desemprego do País. Tradicionalmente, o setor é a porta de entrada do jovem no mercado de trabalho e emprega cerca de 20% dos trabalhadores formais da economia brasileira. Isso sem falar nos desdobramentos que provoca na arrecadação de tributos, especialmente do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
A pedido do Estadão, Fabio Bentes, economista da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), calculou o valor de mercado de um grupo de 20 varejistas com papéis na Bolsa. Juntas, ao fim de 2020, essas empresas valiam R$ 527,810 bilhões. Mas, em dezembro do ano passado, essa cifra tinha recuado para R$ 188,149 bilhões, acumulando uma perda de quase dois terços (64%).
“É um cenário desolador do comércio no pós-pandemia”, afirma o economista, comparando o desempenho recente do varejo com o que houve no passado. Entre 2004 e 2014, por exemplo, o comércio varejista do País viveu um verdadeiro “ciclo de ouro”, quando o volume de vendas crescia, em média, 7% ao ano. Mas, no período seguinte, a partir de 2015 até o fim do ano passado, o que se viu foi estagnação no comércio. As vendas recuaram, em média, 0,1% ao ano.
DERRETIMENTO DE PAPÉIS. A deterioração das condições de consumo – em um contexto de inflação e endividamento em alta, renda e emprego estagnados e, sobretudo, o juro básico fixado atualmente em 13,75% ao ano pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central – é, na avaliação de Bentes, o pano de fundo que explica o derretimento do valor papéis das varejistas na Bolsa de Valores.
O resultado foi influenciado pela crise na Americanas, mas vai bem além. Em 24 meses até março deste ano, as ações de um grupo ainda maior, de 23 varejistas, incluindo mais três companhias – Assaí, Mobly e Westwing, que não estavam na Bolsa no final de 2020 –, recuaram, em média, 59,3% no período, aponta o estudo feito pelo economista. Os cálculos consideraram os volumes negociados das ações.
Movimento pendular Entre 2014 e 2017, vendas no varejo crescerem 7% ao ano; de 2015 a 2022, recuo anual foi de 0,1%
Em recuperação judicial desde o início do ano e com dívidas de R$ 42,5 bilhões, turbinadas por problemas contábeis, a Americanas lidera o ranking das companhias com maiores tombos nas ações do setor de varejo, segundo levantamento do economista Fabio Bentes da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Os papéis da empresa caíram 98,3% em dois anos, seguidos pelos da Mobly (-91,6%), de móveis; da Westwing (-87,3%), de decoração; da Marisa (-87,2%), de vestuário; da Via (-84,4%) e da Magazine Luiza (-83,3%).
Victor Chunques, chefe de relações com investidores da Mobly, diz que a companhia, que abriu capital em fevereiro de 2021, não tem problemas de solidez.
A empresa de tecnologia que atua no comércio eletrônico de móveis foi muito beneficiada pela pandemia. Segundo o executivo, entre 2019 e 2021, ampliou em 50% as vendas.
“A pandemia adiantou muito a demanda por móveis e, por sermos um loja online, havia muita facilidade para comprar”, observa o executivo.
Com a volta à normalidade das atividades, essa situação se reverteu e o valor da ação da empresa foi impactado nos últimos dois anos.
Chunques argumenta que o segmento de móveis tem um valor médio de vendas alto e é muito suscetível ao crédito.
“O mercado depende da queda da taxa de juros para voltar ao normal”, afirma. No curtíssimo prazo, a empresa não tem expectativas positivas em relação ao varejo como um todo. Por isso, a companhia está empenhada em manter a rentabilidade e administrar o caixa. “Temos focado na parte que conseguimos controlar, enquanto o cenário não muda.”
Essa também é a estratégia da Westwing. Andres Mutschler, CEO da empresa, diz que a companhia, que abriu o capital também em fevereiro de 2021, não tem dívidas e está capitalizada.
CORTE DE INVESTIMENTOS. Desde o fim de 2021, com a mudança do cenário do varejo, a empresa reduziu drasticamente os investimentos. “Estamos preservando o caixa e não estamos fazendo projeto mirabolantes”, afirma.
A intenção neste momento é se preparar para enfrentar o cenário de incertezas dos próximos meses. “A perspectiva é que 2023 seja difícil para o varejo: não achamos que os juros vão cair rapidamente e o consumidor deve continuar segurando gastos em categorias menos essenciais.”
A Marisa, que encerrou o ano passado com dívidas de R$ 560,4 milhões e forte queda nas ações, informa por meio de nota que “acredita que os resultados do plano de reestruturação da companhia, já em curso, deverão ajudar a destravar o valor do ativo AMAR3 (ação)”. Procuradas, Via e Magazine Luiza, que também registram fortes retrações no valor das suas ações, não retornaram os pedidos de esclarecimentos da reportagem.
PERSPECTIVAS. O cenário econômico atual não é favorável a mudanças significativas no comércio no curto prazo, especialmente para venda de itens de maior valor e dependentes de crédito, avaliam economistas.
Viviane Seda, coordenadora das Sondagens do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas, diz que os resultados da sondagem do comércio para os próximos três meses não indicam perspectivas de recuperação do varejo. “Nos últimos meses, a demanda está muito fraca de forma geral, especialmente para produtos que necessitam de financiamento.”
No entanto, ela ressalta que, num horizonte maior, para os próximos seis meses, a sondagem feita com empresários do comércio já indica um cenário mais positivo. A perspectiva de recuperação está concentrada em segmentos como os de vestuário, calçados, móveis e eletrodomésticos, que dependem do crédito, porém de forma menos intensiva do que veículos, motos e materiais de construção.
Caminho para o retorno Especialistas condicionam retomada do varejo a queda dos juros, crédito e melhora no emprego
“Lá pelo segundo semestre deve começar a ter uma recuperação mais evidente do comércio, mas ainda dependente de fatores condicionantes, como taxa de juros, endividamento das famílias e mercado de trabalho”, afirma a economista.
MAIS ESTAGNAÇÃO. Fabio Bentes, da CNC, vê 2023 como mais um ano de estagnação. As suas projeções para varejo restrito, que não inclui veículos e materiais de construção, é de crescimento de apenas 0,6% no volume de vendas.
Será a menor marca em sete anos e abaixo do avanço de 1% alcançado no ano passado, que foi um crescimento equivalente ao crescimento vegetativo da população.
O que falta para o varejo deslanchar, na opinião do economista da CNC, é uma perspectiva de mudança nas condições de consumo. Isto é, aquecimento do mercado de trabalho, inflação em forte desaceleração ou com queda significativa e crédito muito mais barato. “Hoje, não é possível vislumbrar esse cenário”, afirma.
Fonte: O Estado de S.Paulo