A inflação de dois dígitos tem sido usada pela área econômica do governo para lançar medidas que tentam, em ano eleitoral, aquecer a economia, que deve crescer abaixo de 1% este ano, de acordo com as previsões. Uma das principais apostas é a redução de tributos.
O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), índice oficial de inflação, acima de 10% nos últimos sete meses, abriu espaço para um aumento da arrecadação.
Na avaliação de especialistas, porém, a renúncia fiscal bilionária deixa uma conta para o próximo governo, à medida que não há garantias de que esse volume crescente de recursos no caixa vá se manter.
Como a arrecadação de tributos consiste, em geral, de um percentual sobre o valor cobrado sobre produtos e serviços, o aumento de preços faz com que o valor levantado pelo governo suba imediatamente. Porém, a maior parte das despesas públicas não tem correção imediata.
Muitas são atreladas ao salário mínimo, corrigido apenas uma vez por ano. É com base nessa defasagem entre os recursos que entram no caixa e os que saem dos cofres públicos que o governo viu espaço para aumentar a concessão de benefícios.
Estimativas do Ministério da Economia apontam que a renúncia fiscal chega a R$ 43,4 bilhões, considerando apenas a redução da alíquota de IPI e PIS/Cofins dos combustíveis. Isso só seria possível graças à elevação da receita decorrente da inflação.
Segundo cálculos do governo, somente a redução de 35% do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) vai representar uma renúncia fiscal de R$ 23,3 bilhões este ano, chegando a R$ 31,9 bilhões em 2025. Para especialistas, abrir mão de imposto sem garantia de que essa receita continuará a crescer adiante pode agravar mais a situação das contas públicas.
O governo, porém, avalia que os cortes de tributos são feitos de forma sustentável, com uma arrecadação que sobe acima da inflação.
— Esse fenômeno está na base das crises inflacionárias que já ocorreram aqui e em outros países — ressalta o economista e professor da UnB, Roberto Ellery.
Saídas como esta, lembra a professora de economia do Insper, Juliana Inhasz, levam ao fenômeno que ficou famoso no Brasil dos anos 1980: o imposto inflacionário:
— Não é um imposto que você paga de boleto, como IPTU e IPVA, mas é um imposto que a inflação cria dentro da economia, como se as pessoas estivessem pagando um tributo. Elas são obrigadas a consumir menos, se deparam com um poder de compra menor e não têm como se negar a pagar esse custo maior, porque ele está no caixa do mercado, na hora que paga o produto, embutido no preço.
Segundo ela, o poder público se beneficia da inflação alta, porque os preços mais elevados ampliam a base de incidência tributária, o que se reflete na arrecadação.
Para Juliana, a elevação da arrecadação não é sustentável e, em breve, o governo vai se deparar com a elevação dos próprios gastos, também motivada pela alta da inflação, a se refletir no aumento dos custos de compras com novos contratos e reajustes salariais. Mas essa reversão só deve acontecer no próximo governo.
Atualmente, o governo sustenta a redução de impostos em dois pilares. O primeiro é que, a curto prazo, a arrecadação mais alta faz frente a um gasto que não subiu na mesma proporção. O segundo é a alta dos preços das commodities.
— O ciclo de commodities acontece agora, porque o mundo está em recuperação, mas ele tem um prazo de validade, que não é tão longo —afirma Juliana.
Esse efeito na economia ainda terá reflexos pelo menos até 2023, na avaliação do economista Lucas Dezordi, professor da PUC-PR. Ele alerta para o fato de o aumento da arrecadação em ritmo recorde não ser estrutural, não vai se manter nos próximos anos, e sim conjuntural.
— Contudo, no cenário de inflação elevada e commodities valorizadas, não esperamos uma queda expressiva dessa arrecadação —diz Dezordi.
Para ele, com a redução da inflação e desaceleração do Produto Interno Bruto (PIB), o ritmo de arrecadação para 2023 tende a cair, mas não acredita que chegue ao ponto de contribuir para um desequilíbrio fiscal.
Mudança no teto de gastos
Roberto Ellery, da UnB, aponta outro “problema grave” relacionado com a inflação: a mudança no teto de gastos — regra que limita o crescimento das despesas à inflação do ano anterior — para permitir aumento de gastos em ano eleitoral. Mudou-se o prazo do cálculo para ter um índice de correção das despesas mais alto, já que o teto de gastos é calculado pela inflação.
— O ponto principal do teto era forçar escolhas no Orçamento. Se o governo quiser atender a um grupo, deve arcar com os custos políticos de contrariar outros grupos. Mudar o teto de forma a permitir aumento de gastos quebra esse princípio. No lugar de escolher quem atender e quem enfrentar, o que deveria ser normal em uma democracia, o governo optou por agradar aos congressistas para aumentar o limite do teto em 2022 e facilitar outras escolhas.
Ellery cita, ainda, o orçamento secreto — emendas do relator nas quais não há transparência e destinadas às regiões que formam a base eleitoral dos parlamentares — para obter o apoio do Legislativo a projetos de seu interesse:
— É o caso clássico de comprar apoio político com recursos do Orçamento. No passado, isso deu processo e até cadeia. Agora querem legalizar.
Para Juliana Inhasz, o Orçamento é mais um exemplo do uso político da inflação. Ao usar valores baixos para a projeção da inflação, como ocorre na proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023, o governo acaba reajustando tudo o que tem de pagar a um valor menor, e o que recebe a outro maior, o que não é sustentável.
A proposta de LDO usou um percentual de 6,7% para reajustar o salário mínimo, que tem efeito cascata nas contas públicas. Mas as projeções do Boletim Focus, pesquisa do Banco Central com cem instituições financeiras, apontam inflação de 7,89%.
FONTE: O Globo