A indústria automobilística passa pelo dilema de ter de escolher qual tecnologia vai mover os carros brasileiros nos próximos anos. Se a híbrida flex, com foco no uso do etanol, combustível renovável usado há mais de 40 anos apenas no Brasil, ou a elétrica, que traz junto as discussões de reciclagem de baterias e necessidade de aumento de extração de matérias-primas, como lítio e alumínio.
Os maiores produtores mundiais de veículos, como China, EUA e Europa já se definiram pelos veículos elétricos, por falta de outras opções para atenderem normas de descarbonização. No Brasil, oitavo maior na lista de fabricantes, boa parte das montadoras tende para o híbrido flex, que usa um motor elétrico e outro a combustão, que pode ser abastecido com etanol ou gasolina.
O Ministério do Desenvolvimento Indústria Comércio e Serviços (Mdic), com quem as montadoras negociam benefícios para desenvolver as novas tecnologias para a segunda fase do programa automotivo Rota 2030, informa defender a exploração de todas as rotas tecnológicas disponíveis para o processo de descarbonização.
“A decisão é de cada montadora, mas ela precisa avaliar se a escolha é o melhor caminho para ter competitividade no mercado e contribuir para a descarbonização, defendendo a ideia da sustentabilidade, geração de emprego, alta qualificação e renda”, afirma ao Estadão o secretário do Mdic, Uallace Moreira Lima.
Outra questão a ser avaliada, diz ele, é a inserção internacional das empresas. “O parque automotivo brasileiro tem capacidade para produzir 4,5 milhões de veículos ao ano e hoje opera com 2 milhões; as empresas não deveriam avaliar a possibilidade de maior inserção internacional para não dependerem só do mercado interno?”, questiona.
Melhor alternativa
Empresas que defendem o carro híbrido flex como melhor alternativa, como a Toyota, que já produz esse tipo de veículo no País desde 2019, afirmam que levam em conta a estrutura de abastecimento (que já está pronta), a matriz energética – que no caso do Brasil é limpa, enquanto outros países ainda são dependentes de fontes fósseis – e a acessibilidade do consumidor (a tecnologia elétrica ainda é cara).
Rafael Chang, presidente da Toyota do Brasil, afirma que o grupo tem diversas tecnologias disponíveis, como híbrida, elétrica e a hidrogênio, “mas quer colocar no mercado as soluções que sejam mais práticas e sustentáveis para cada região e, no caso do Brasil, o etanol absorve CO2 na atmosfera no momento do cultivo da cana, é limpo e faz parte da economia brasileira”.
Ele informa que os híbridos da marca, Corolla e Corolla Cross, custam de 5% a 10% a mais que as versões a combustão, e representam atualmente 40% das vendas dos dois modelos. Ressalta, porém, que “cada tecnologia contribui para o processo de descarbonização, algumas mais que outras, e cada uma terá uma diferenciação de imposto de acordo com o que entrega.”
A empresa exportou recentemente um modelo híbrido flex para a Índia parta testes. O país já produz cana de açúcar e tem capacidade de ampliar o plantio. No mês passado, a Toyota também anunciou investimento de R$ 1,7 bilhão na produção de mais um híbrido flex, dessa vez de um carro compacto, de menor preço. “Vamos melhorar o acesso a essa tecnologia para mais consumidores e trazer escala para nossa produção”, diz. “Com isso, haverá maior possibilidade de produção local de componentes.”
O grupo Caoa/Chery também produz modelos híbridos flex, mas os chamados de “hibridização leve”, que ajudam a reduzir o consumo de combustível e as emissões. Eles funcionam com uma pequena bateria e um gerador elétrico que, ao contrários dos demais híbridos, não consegue tracionar as rodas do carro sozinho.
Pelo menos mais três montadoras já declararam estar desenvolvendo produtos com essa solução – a Stellantis (dona da Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën), a Volkswagen e a Renault. A chinesa GWM – que comprou a fábrica da Mercedes-Benz em Iracemápolis (SP) – vai iniciar a produção local daqui a um ano com um híbrido flex. Já a também chinesa BYD, que negocia a compra da planta da Ford em Camaçari (BA), deve começar operações com um híbrido plug-in.
Outro reforço na discussão veio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que na semana passada levou ao presidente Lula documento com propostas para retomada do setor automotivo – que está parando fábricas e dando férias coletivas aos funcionários em razão da queda de mercado. A entidade também apoia a produção de híbridos flex.
Híbrido flex pode ser outra jabuticaba
Por outro lado, defensores dos carros elétricos avaliam que o País pode se isolar dos demais fabricantes e ficar para trás tecnologicamente com mais uma “jabuticaba”, termo utilizado para os carros a álcool, para os modelos populares com motor 1.0 e agora para os híbridos flex.
Oficialmente, só uma grande fabricante, a General Motors, afirma que, na transição, pretende ir direto para a eletrificação, seguindo diretrizes que sua matriz norte-americana está adotando em todo o mundo. É possível que a Honda também siga esse caminho. “Queremos ser pioneiros na produção de elétricos no País”, afirma o presidente da GM América do Sul, Santiago Chamorro.
O executivo ressalta que o prazo vai depender do volume de vendas dos elétricos que inicialmente serão importados, pois a manufatura local depende de escala. A subsidiária brasileira já contribui com a matriz no desenvolvimento da nova geração de veículos elétricos com a realização de testes e homologações de modelos em seu Centro Tecnológico em São Caetano do Sul e sua pista de testes em Indaiatuba, ambos em São Paulo.
A aposta pode implicar no isolamento da marca no País, pois nenhuma outra montadora cita prazos para a produção de carros 100% elétricos, que são mais caros que os híbridos em razão do ainda elevado custo da bateria e da alta tecnologia embarcada.
“Ao transferir a produção direta para os BEVs (sigla para carros elétricos), a GM pode perder mercado e correria risco de se tornar apenas importadora, como fez a Ford”, diz Fernando Trujillo, consultor da S&P Global Brasil.
Trujillo avalia que, para os próximos 15 a 20 anos, a tecnologia híbrida flex pode ser uma boa alternativa para o Brasil, pois as metas de emissão de CO2 serão cumpridas com o etanol. O governo ainda não definiu as regras para a segunda fase do Rota 2030. Será preciso também definir novas normas de eficiência energética dos automóveis, tarefa que cabe ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conoma).
A partir de 2040, prevê Trujillo, será preciso incluir mais carros elétricos na frota nacional para cumprir as metas do Acordo de Paris e, nesse período, a produção de elétricos deverá se intensificar.
Forma de medir emissões pode favorecer o Brasil
Na maioria dos países, a conta das emissões é feita pelo processo chamado de “tanque à roda”, mas empresas brasileiras defendem o uso da metodologia que mede do “poço à roda”, quando inclui os impactos ambientais de todo o processo produtivo do combustível a ser usado no carro elétrico, conta que deixa o etanol à frente de outras tecnologias (ver quadro).
O presidente da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA), Marcus Vinícius Aguiar, afirma que, independente da tecnologia a ser definida para o curto e médio prazos, é preciso desenvolver uma engenharia brasileira para a motorização elétrica. “Temos expertise e condições para isso, mas a questão hoje é volume.”
“A eletrificação dos automóveis, no momento, está só nos países ricos” – Marcus Vinícius Aguiar, presidente da AEA
Em sua opinião, os carros a combustão no Brasil terão vida mais longa do que na China e em países da Europa, porque lá grande parte da energia vem de fontes mais sujas, enquanto as fontes energéticas são renováveis e o uso do etanol ajuda o País a cumprir as regras de emissões, que estão mais atrasadas em relação a esses países. Ele ressalta, contudo, que “ninguém vai colocar etanol no carro se o combustível for mais caro.”
Aguiar também avalia que o Brasil não vai se isolar do resto do mundo se inicialmente adotar a tecnologia híbrida flex. Segundo ele, há outras regiões que não terão condições de partir logo para os elétricos, como a Índia e vários países da África, América Latina e Ásia. “A eletrificação, no momento, está só nos países ricos.”
Volta do importo de importação
A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), que vê uma divisão entre as associadas num momento em que discute com o governo novos incentivos à pesquisa e desenvolvimento, agora trava com o governo debate sobre a volta do Imposto de Importação, de 35%, para carros elétricos. Esses modelos estavam isentos do tributo desde 2015, para introduzir a tecnologia no País, mas agora a entidade acredita que a isenção por longo período pode atrapalhar planos de investimentos nos híbridos.
A proposta da entidade é retomar a alíquota de 35% – cobrada também de todos os importados de fora do Mercosul e do México -, de uma vez ou parcialmente, e criar cotas isentas para as fabricantes e as importadoras. Lima, do Mdic, diz que o tema está em avaliação.
A Anfavea também informou nesta segunda-feira, 8, que realizará no dia 14 de junho seminário me Brasília sobre carros elétricos coma intenção de mostrar o que está ocorrendo em outros países e as oportunidades para o Brasil. A ideia é levar pessoas do governo, da indústria, do legislativo e acadêmicos.
Fonte: O Estado de São Paulo